O “papo-amarelo”

História retirada do Projeto "Memória Votorantim" Volume II

José da Cruz

Macaquinho, jacaré e garrote.O leitor imagina que estou falando de três bichos, não é? Na Via Férrea do Grupo Votorantim, na Fábrica de Cimentos onde fui admitido em 1974 e estou até hoje, estes termos eram aplicados nos serviços de manutenção da linha.Mas é claro que, ao iniciar meu trabalho no então escritório da Via Férrea, eu desconhecia totalmente o significado destas palavras.

A ferrovia, com seus 13 km de linha, vai de Sorocaba a Santa Helena, Município de Votorantim, onde se localiza a Fábrica de Cimentos. A linha passa na beira do rio Sorocaba e, em Santa Helena, na beira da represa Prainha. Com três dias de serviço, quase no final do meu expediente, o pessoal da linha tinha chegado com uma prancha, um tipo de vagão aberto para transporte das ferramentas. Vieram do lado de Santa Helena e eu flagrei a seguinte conversa do Chefe com o Encarregado da turma de trabalhadores:

— E então, Seu Dito, conseguiu trazer o jacaré?

— Olha, Seu Didi, suamos pra arrancar o bicho do meio daquele matagal da beira da linha e colocar ele em cima da prancha.

— O que vocês usaram? Como conseguiram? Ele é muito pesado!

— Usamos as alavancas de ferro e conseguimos pôr o bichão aí em cima.

Amanhã nós o levaremos pra descarregar lá na ponte da rua Quinze.

Sentado no escritório, concentrado no livro grosso de capa dura de Registro de Movimento de Trens,ao ouvir essa conversa fiquei muito curioso.Depois que todo o pessoal da Manutenção já tinha ido embora, e o Chefe também, fechei o escritório e fui na sala do Agente de Estação. Seu Antonio, que estava no segundo turno, era com quem mais eu me familiarizara desde o primeiro dia. Ele fazia algumas anotações e perguntei:

— E aí,Seu Antonio, estou querendo ver o bichão lá na prancha, será que ele está vivo?

— Que bichão? – perguntou ele muito admirado.

— Ué? O Senhor não escutou a prosa do Ditinho com o Seu Didi há pouco? Parece que eles pegaram um jacaré lá pra cima, perto da represa, e amanhã vão levar para Sorocaba, lá perto da rua Quinze, onde fica o Jardim dos Bichos. Acho que vão soltar ele lá.

Seu Antonio levantou-se da mesa e, saindo no pátio, encontrou com o Severino, um manobrador dos mais gozadores que havia na Via Férrea.

Perguntou sobre o tal jacaré, contando-lhe o que eu havia falado, ao que o Severino comentou muito sério:

— Olha, Seu Antonio, lá no Nordeste eu já tinha visto jacaré, mas nenhum do tamanhão que tem esse aí. Ele saiu da represa e tava lagarteando na beira da linha,o Chico Banguela viu quando passamos ontem à tarde e daí eles decidiram caçar o bichão e levá-lo pro Jardim dos Bichos em Sorocaba.Tiveram que amarrar a boca dele com arame,porque ele lascou uma mordida no cabo de uma picareta e o partiu no meio!

E fomos os três no final de tarde, quase noite, rodear a prancha onde estava o tal jacaré, do lado oposto da estação. A prancha era meio alta eu, apoiado na ponta dos pés, tentava ver alguma coisa no meio de todas aquelas ferramentas e equipamentos, com um pé sobre um trilho e o outro em um dormente. Eu estava esticado quando,de repente, senti como uma ferroada no calcanhar, dei um grande grito e um pulo que fui parar na calçada da estação, enquanto o Seu Antonio e o Severino se es- borrachavam de dar risada do meu susto.

Um deles grudara em meu calcanhar apertando-o para lembrar uma mordida. Bravo mesmo eu fiquei quando descobri que o tal jacaré era um AMV - Aparelho de Mudança de Via, instalado nas entrevias, o que possibilita um trem passar para outra linha. Como tem mais ou menos o formato de um jacaré, é este o nome que a peãozada dá para o aces- sório e que, na minha cabeça de ferroviário iniciante, era um perigoso “papo-amarelo” que acabou criando vida com a zoada do Severino.